“Lembrar para compreender: a agonia do Estado Novo e os enigmas da sua longevidade”
Conferência com o Prof. Doutor Álvaro Garrido.
No passado dia 29 de Abril de 2011, no âmbito das actividades comemorativas do 25 de Abril este ano, foi proferida na Escola Secundária da Mealhada uma conferência pelo Prof. Doutor Álvaro Garrido, cujo título foi “Lembrar para compreender: a agonia do Estado Novo e os enigmas da sua longevidade”, organizada pelo grupo disciplinar de História (Departamento de Ciências Sociais e Humanas) e pela Biblioteca Escolar.
O conferencista é professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde coordena o Grupo de História Económica e Social. Este investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra e antigo director do Museu Marítimo de Ílhavo é Doutorado em História Económica e Social pela Universidade de Coimbra. Pela sua actividade científica, foram-lhe atribuídos vários prémios (História Contemporânea Victor de Sá e História Contemporânea Alberto Sampaio), tendo publicado alguns livros importantes sobre a História de Portugal do séc. XX, nomeadamente “O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau” (2010), uma biografia de Henrique Tenreiro (2009), “Portugal no Mar: Homens que foram ao bacalhau” (2008), entre outros.
A conferência teve como tema central a questão da longevidade do Estado Novo, uma vez que o autor considera intrigante e fundamental perceber porque é que este regime foi “a mais duradoira das ditaduras europeias que se formaram no período das duas guerras e a mais institucionalizada de todas elas”.
Como historiador que é, considera que a melhor maneira de comemorar o 25 de Abril é evitar o esquecimento e combater uma certa “amnésia deliberada”. A História será, pois, uma forma de construir uma “memória estruturada num discurso ordenado e racional sobre o passado”.
Álvaro Garrido apresentou seis teses que poderão explicar a longevidade do Estado Novo e do Salazarismo, tendo em conta que não haverá apenas uma ou duas causas explicativas para o facto, mas antes uma “explicação multicausal”.
Na primeira dessas teses, o conferencista fez o enquadramento interno e externo da implantação do Estado Novo, o qual surgiu num contexto de crise generalizada do regime Liberal que vigorava em muitos dos Estados europeus da época. Nos anos 20 e 30 do século XX, surgiram, como vaga de fundo, ideologias que propunham soluções autoritárias e totalitaristas, os quais se foram impondo em quase todos os países europeus.
Também em Portugal, o sistema parlamentar se encontrava em profunda crise, primeiro com a erosão da Monarquia Constitucional e, depois, com as profundas clivagens sócio-políticas criadas com a Implantação da República.
A crise de legitimidade da I República, com um exército dividido e politizado desde a participação de Portugal na Grande Guerra, encontrou numa coligação antidemocrática (republicanos conservadores, monárquicos, católicos e integralistas), unidos em torno da ideia da necessidade de impor a ordem e da reposição do Estado, os agentes para a institucionalização de um regime autoritário em Portugal. O autor considera que os movimentos fascistas não tiveram grande expressão, uma vez que Portugal não reuniria condições típicas para a propagação de um fascismo na plena acepção da palavra, e que estes agentes assentavam antes num conjunto genérico de ideias “reaccionárias e contra-revolucionárias” típicas da época (Integralismo Lusitano).
A ascensão do poder de António de Oliveira Salazar, durante a Ditadura Militar (1926-33), fez-se num contexto vazio ideológico e nas dificuldades de institucionalização de uma “Ditadura sem ditador”, aproveitado para, a pouco e pouco, se ir impondo através de uma ditadura financeira e de uma imagem de credibilidade técnica e política, assim como do controlo dos militares, assente num compromisso institucional (os Presidentes da República foram sempre militares), e dos movimentos fascistas mais radicais, integrados na União Nacional ou neutralizados.
Nesta sua primeira tese, Álvaro Garrido considera, portanto, que o Estado Novo, não obstante as suas originalidades, surgiu no mesmo contexto que outros regimes análogos surgiram por toda a Europa na época, de ideologia essencialmente antiliberal, antidemocrática, antiparlamentar e anticomunista, e que propunha como fórmula de estruturação social e económica o corporativismo, uma “terceira via entre o capitalismo liberal e o socialismo colectivista, procurando assim “disciplinar” o Capital e o Trabalho de acordo com os “interesses nacionais”.
A segunda tese que explicará a longevidade do Salazarismo refere-se à “singularidade do nacionalismo português”. Segundo o autor, em Portugal muito poucos colocaram em causa a existência do Império e do colonialismo. Era generalizada a ideia (“efabulação ideológica”) de que o colonialismo português era diferente dos demais e que fazia parte do “destino histórico” de uma “pequena nação” mas com “grandeza imperial”. Salazar terá aproveitado este largo consenso em torno da questão colonial, um “nacionalismo imperial” como o autor lhe chama, para proceder a uma “refundação” do Estado com a Nação.
A terceira tese aponta a “eficácia do projecto cultural do regime” como forma de prevenir e reprimir a oposição, procurando impor uma anestesia cívica e utilizando eficazmente a propaganda política. Para tal serviu a “política do espírito” animada pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), depois Secretariado Nacional de Informação (SNI), de António Ferro, o papel da Escola, em especial o ensino da História baseado no culto dos heróis e de uma mistificação do passado, a acção da Igreja Católica, as organizações de juventude (Mocidade Portuguesa, a sua congénere feminina, mas também o movimento escutista católico), entre outros meios. Como o autor sublinhou, o regime promoveu a apatia e desmotivava acções de rua, ao contrário dos movimentos fascistas europeus, assim como procurava conter o pensamento num estado conformista e acrítico. Promovia, portanto, o “fazer viver Portugal habitualmente”, nas próprias palavras de Salazar em 1937.
A quarta tese aponta uma política económica que promovia a autosubsistência económica de um país (autarcismo) e, consequentemente, um nível reduzido de integração externa, procurando evitar os graves erros que a República a este nível tinha cometido. Esta política implicou que o Estado procurava dirigir a economia e proteger determinadas corporações e sectores de actividade, com o objectivo de estabilizar o abastecimento alimentar, evitar a escassez e a carestia, impedindo o protesto popular e garantindo uma “paz social obrigatória”. Assistiu-se a uma valorização da agricultura em detrimento da industrialização, que também tinha uma correspondência ideológica na glorificação das virtudes do ruralismo face à dissolução atribuídas à cidade e à indústria.
Até à II Guerra Mundial, não interessou ao Estado Novo fazer desenvolver a economia, mas tão-somente contê-la nos estritos limites que servisse ao regime. Só então se assistiu a uma abertura à industrialização, contida e moderada, imposta pela necessidade de substituir importações durante o conflito, mesmo assim sujeita ao condicionamento industrial e ao proteccionismo pautal, assim como às restrições ao investimento estrangeiro.
Este cuidado em isolar economicamente Portugal do estrangeiro também se verificou na política monetária, procurando amortecer o efeito das crises externas e conter os ímpetos inflacionistas o mais possível.
A situação alterou-se significativamente com a abertura de Portugal após a II Guerra Mundial (Plano Marshal, 1948, adesão à EFTA, 1960), embora a esta modernização económica não tivesse correspondido uma modernização social de igual modo, numa contradição que o regime não teve interesse em resolver.
A quinta tese refere o efeito protector de uma política externa “atlântica”, que implicou, por um lado o afastamento de Portugal das questões continentais europeias (e da Guerra) e, por outro, a reafirmação de uma vocação atlântica, da fidelidade à aliança com a Inglaterra e da defesa da integridade dos territórios ultramarinos. Estabeleceu também uma “amizade peninsular” com a Espanha franquista, anulando a principal ameaça externa. Esta política externa, essencialmente pragmática, teve sempre por critério fundamental a sobrevivência do regime na gestão das diversas crises que Salazar enfrentou: a ascensão dos republicanos ao poder em Espanha e a Guerra Civil que se seguiu, a neutralidade na II Guerra Mundial, a adesão à NATO, aproveitando os alinhamentos que a Guerra Fria impunha, e a adesão à ONU, em 1955.
Foi só a partir do final da década de 50 do século XX que se assistiu a um crescente isolamento internacional, acentuado com o eclodir da Guerra Colonial em 1961, mas até então Salazar foi muito hábil a evitar envolver Portugal em perigosas aventuras políticas e militares no exterior, poupando o regime às mesmas consequências desastrosas que a participação na I Guerra Mundial tinha trazido à I República.
A última tese apresentada tem a ver com o relativo êxito das relações com os militares e a capacidade reduzida que as oposições demonstraram para derrubar o regime. A relação com os militares foi fundamental na construção do regime. Afinal, o Estado Novo emerge de uma Ditadura Militar e na Presidência da República sucederam-se sempre militares. Até 1945 a “cooptação e subordinação da elite militar é eficaz”, segundo o autor, mas as dissidências manifestam-se a partir de então, como foi o caso expressamente referido por Álvaro Garrido da denominada Revolta da Mealhada, episódio ocorrido em Outubro de 1946. A manifestação de dissidência por parte de militares intensifica-se com a chamada geração NATO, ou seja, daqueles que, no âmbito desta organização internacional, vão contactando com outras realidades políticas e verificando que é possível evoluir politicamente. Será o caso, por exemplo, de Humberto Delgado. Com a Guerra Colonial, a situação modifica-se à medida que o regime não consegue uma solução política, assistindo-se a um cada vez maior compromisso de militares com a oposição, culminando com o golpe militar do 25 de Abril.
Foram estas as 6 razões apresentadas por Álvaro Garrido para explicar a longevidade de um regime que começou por ser um regime de excepção mas que acabou por durar 47 anos e 10 meses, 40 dos quais com António de Oliveira Salazar no poder.
Além destes, o autor apontou outros paradoxos que acabam por caracterizar a ditadura e concorrer para a sua longevidade: foi um projecto político e social que se anunciou regenerador mas que foi ultra-conservador e que substituiu as oligarquias liberais por outras; constitui-se contra a República liberal mas não restaurou a monarquia; afirmou-se como reparadora dos excessos anticlericais do republicanismo jacobino, mas não permitiu que o Estado fosse confessional; foi ditatorial, mas consentiu mais eleições do que outro qualquer, embora fossem obviamente não-livres; teve um discurso corporativista mas nunca o foi de facto; ilegalizou os movimentos fascistas mas não prescindiu de organizações paramilitares de cariz fascista.
Como balanço final, cremos que foi uma conferência de alto nível científico, que contribuiu para uma reflexão renovada acerca de uma boa parte da História de Portugal do século XX, constituindo uma excelente síntese a ser utilizada nas aulas como material de estudo.